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20 de nov. de 2009

Nascimento e Morte







O HOMEM E A MORTE
(Edgar Morin, Editora Imago, 1997, 356p.)

Deve-se partir, sobretudo, não do caráter espantoso, paradoxal e escandaloso da morte em relação à ordem do vivo, e sim do caráter espantoso, paradoxal e escandaloso da vida em relação à ordem física. O problema primeiro é: visto que a organização físico-química está submetida a um princípio de degradação, desintegração e dispersão irrevogável, como é possível que haja vida? O estado “natural” é a dispersão que
sobrevém após a morte. Eis o paradoxo da vida.

As ciências do homem negligenciam sempre a morte. Contentam-se em reconhecer o homem pela ferramenta (homo faber), pelo cérebro (homo sapiens), pela linguagem (homo loquax). No entanto, a espécie humana é a única para a qual a morte está pres ente ao longo da vida, a única a acompanhar a morte com um ritual funerário, a única a crer na sobrevivência ou no renascimento dos mortos. Assim, a morte introduz entre o homem e o animal uma ruptura mais espantosa ainda do que a ferramenta, o cérebro, a linguagem.

A recusa da morte caracteriza o homem, que, assim, cria os mitos da ressurreição e da imortalidade. Esses mitos acalmam o traumatismo da morte, que é o traço mais característico do homem. A morte é, à primeira vista, uma espécie de vida, que prolonga, de um modo ou de outro, a vida individual.

A dor, o terror, a obsessão da morte têm um denominador comum: a perda da individualidade, o aniquilamento do ser. A idéia da morte não é nada mais do que a idéia da perda da individualidade, e o complexo d e perda dessa individualidade é traumático, visto que a morte destrói a consciência do ser.

Daí o homem forjar o mito da imortalidade, que nada mais é do que a firmação da individualidade além da morte. A afirmação incondicional do indivíduo é uma realidade humana primordial.

O homem vê-se, assim, revoltado com uma morte à qual não pode escapar, pois é próprio do ser humano a ânsia de uma imortalidade que ele deseja ver realizada.

Já os animais, por não serem dotados de uma consciência individual, “conhecem” a morte apenas como uma morte-agressão, uma morte -perigo, uma morte-inimiga na luta pela sobrevivência. Para os animais vale o instinto: é a espécie que conhece a morte, não o indivíduo. Nesse sentido, o animal é cego para a morte, pois ele não tem consciência, não tem idéias. A cegueira animal à morte é uma cegueira à individualidade.

A morte-perda-de-individualidade só os humanos conhecem.

É porque seu saber da morte é exterior, aprendido, não inato, que o homem é sempre surpreendido pela morte.

Já dizia Freud: “Sempre insistimos no caráter ocasional da morte: acidentes, doenças, infecções, velhice, revelando assim claramente nossa tendência a despojar a morte de qualquer caráter de necessidade, a fazer dela um fato puramente acidental.”

Assim, a morte aparece, de repente, como um acidente, um castigo, um erro, uma irregularidade.

Cada um de nós está firmemente persuadido de sua própria imortalidade, daí nossa recusa enganadora
da morte.

O fato de se aderir à atividade cotidiana, do dia-a-dia, elimina qualquer pensamento de morte. A vida cotidiana é pouco marcada pela morte: é uma vida de hábitos, de trabalho, de atividades corriqueiras. A morte só vem quando o ego a olha ou se olha a si próprio. A idéia da morte-destruição é, na vida cotidiana,
o tempo to do reprimida, transferida, m etamorfoseada.

Um processo fundamental de afirmação da individualidade se manifesta por meio do “desejo de matar” as individualidades dos outros. A afirmação da própria individualidade provoca a destruição absoluta das outras individualidades. Basta ver o processo de afirm ação da individualidade ao longo da história, que tem um aspecto terrivelmente bárbaro, isto é, assassino. O que é o escravo senão um morto para a sua afirmação individual? E as guerras, os holocaustos, os genocídios? Os reis são sempre acompanhados por subindividualidades: escravos, cortesãos, bufões, bajuladores... mortos-vivos grotescos.

A religião, que para Marx representa “o suspiro da criatura angustiada” e para Freud “a neurose obsessiva da humanidade”, tem o papel vital de refutação da morte. Ela difunde o otimismo que, por meio do mito da imortalidade, permite ao indivíduo ultrapassar sua angústia existencial. A religião é uma instituição que traduz a inadaptação humana à morte. Com a religião, o homem co nstitui para si uma visão cosmomórfica da morte, que, ao mesmo tempo, garantirá a imortalidade à nossa individualidade.

Ressuscitar é uma reivindicação essencial do indivíduo, e é para esse fim que a religião existe. Com a crença na sobrevivência pessoal após a morte, o indivíduo exprime sua tendência a salvar sua integridade além da decomposição física.

Os paraísos além -morte são transposições ideais e perfeitas da vida a que aspiramos. Nesses paraísos fictícios, a vida continua, semelhante à vida dos vivos.

A salvação implica a promoção da alma que quer sobreviver à ruína do corpo, e até garantir para si um corpo imortal. Ela também implica a intervenção salvadora de um deus que livra os homens da morte.

O deus da salvação é aquele cuja força de ressurreição o homem utiliza a fim de ressuscitar a si próprio. A salvação responde a uma exigência essencial do indivíduo, que teme a morte e quer ser salvo.

A transmigração das almas para um outro mundo afasta a destruição e integra a morte no processo da vida individualizada. O indivíduo, ser relativo, chega a se colocar legitimamente como absoluto, postulando a imortalidade para si.

Coincidindo com a angústia de morte e agravando -a, fazendo-a tropeçar de nada em nada, as descobertas das ciências esmagam e debilitam o indivíduo. A ciência desperta a consciência para os abismos que se abrem uns sobre os outros, devorando -se uns aos outros. As civilizações são mortais. A humanidade está fadada à morte. A Terra morrerá. E também os mundos e os sóis. E o próprio universo perecerá um dia.

Tudo remete o indivíduo solitário em sua existência a uma solidão cada vez mais miserável no vazio de um nada sem limite. Aquele que se sente estranho no mundo, e sente sua morte estranha a si próprio, só possui a si mesmo, última presença, último calor, e é exatamente esse si mesmo que vai perecer, apodrecer, morrer. A pessoa não pode fundar nada sobre a sua individualidade fadada ao nada.

A morte estrutura a vida humana, que é uma vida-para-a-morte. A finitude da temporalidade é o
fundamento da historicidade do homem.

Toda morte é solitária e única. A morte está na ossatura da individualidade do ser. Para que servem as afirmações religiosas de imortalidade, senão para afundar um pouco mais na angústia o homem, que não
pode crer nessas promessas infantis?

O homem esconde sua morte como esconde seu sexo, como esconde seus excrementos, como esconde suas mentiras. Dir-se-ia um anjo... Banca o anjo para recusar a sua finitude animal.
Absurdo o mundo, absurda a morte, absurdo o indivíduo. Tudo é absurdo.

* * *
ALGUNS PENSAMENTOS INQUIETANTES
* Nem o sol nem a morte podem ser olhados de frente.
* Tudo gravita em torno das estruturas da individualidade humana.
* A morte não é nunca o que dá sentido à vida, e sim, pelo contrário, é o que lhe tira toda a significação.
* A imortalidade é a nossa defesa mágica contra a morte.
* O homem vive no acaso.
* A vida está sempre beirando o desastre.
* A vitória do homem sobre o mundo biológico terminará com a morte – nosso fracasso derradeiro.
* Absurdo geral: tudo que existe nasce sem razão, prolonga-se por fraqueza, e morre por acaso.
* Após a morte, tudo acaba, até mesmo a morte.
* A morte é a lei da espécie.
* O frisson é o melhor daquilo que se encontra no homem.
* A morte é um sono sem sonhos.
* Este nada que somos é o ser puro absoluto.
* A origem da dor é a sede de existência.
* A angústia da morte nasce a partir do endeusamento de si mesmo.
* A morte niiliza a consciência.
* A morte é morte quando o ego está morto.
* A morte é o veneno do amor de si próprio.

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